sábado, 6 de julho de 2013

Guerra Mundial Z: o filme e o livro

Semana passada assisti “Guerra Mundial Z”, e fiquei tão impressionado com o filme que resolvi ler o livro homônimo de Max Brooks, no qual o filme é vagamente inspirado. Não me decepcionei.

O ritmo do filme (filme que, aliás, é o mais caro da história do cinema), é frenético desde o início. Tirando uma cena doméstica no início que não serve pra muita coisa, não é exagero dizer que em nenhum momento se tem mais do que 3 minutos pra respirar entre uma fuga e outra. A sensação de que “dessa vez não vai dar” é permanente, sem contudo comprometer a credibilidade da narrativa (claro, até o ponto em que um filme sombre zumbis possa ser crível).

Os zumbis do filme são uma força da natureza, rápidos e letais como um tsunami que fica mais forte a medida que avança, mas não tão inteligentes quanto os de “Eu sou a lenda” (inspirado no conto de Richard Matheson, o pai das modernas histórias de zumbis, publicado no Brasil pela Novo Século). As semelhanças com a história protagonizada no cinema por Will Smith não param por aí. Aqui também os zumbis são uma epidemia que alastra antes que qualquer um possa pensar em fazer algo a respeito, dizimando quase toda a espécie humana e arrasando cidades inteiras. Mas enquanto “Eu sou a lenda” é um filme solitário, “Guerra Mundial Z” é épico em todos os aspectos. O personagem principal, Gerry Lane (vivido por Brad Pitt), é um enviado da ONU que precisa descobrir onde a praga surgiu, em busca de pistas sobre como eliminá-la. Em outras palavras, ele vai atrás de uma cura (outra coincidência com “Eu sou a lenda”).

Entre pistas falsas, perseguições e fugas impossíveis (como escapar de um avião de carreira em pleno vôo lotado de zumbis?), há muito tempo não me divertia tanto no cinema.

Já o livro, cujo autor é filho do Mel Brooks, é mais uma paródia, não só com as histórias de mortos-vivos, mas principalmente com a paranóia norte-americana após os atentados de 11 de setembro. Os zumbis enquadram-se perfeitamente nessa ideia de que o cara ao seu lado pode ser o inimigo, que vai te atacar quando você menos esperar e por onde você menos esperar.

Diferentemente do filme, o livro é uma espécie de relato jornalístico, um livro fictício de histórias pessoais escrito e publicado 12 anos após o fim da guerra da humanidade contra os zumbis. Seu autor é o mesmo enviado das Nações Unidas retratado no filme, mas ao invés de ser a ponta de lança dos esforços de guerra humanos contra o inimigo comum, ele é um burocrata que viaja pelo mundo colhendo relatos de quem lutou e sobreviveu nessa guerra. Assim, o leitor só recolhe fragmentos de fatos, ainda assim contaminados pelo ponto de vista de quem os está contando, seja o empresário inescrupuloso que lucrou bilhões vendendo uma cura falsa, seja o marinheiro chinês parte da tripulação de um submarino nuclear chinês que desertou, seja o vice-presidente dos Estados Unidos Continentais.

Por falar em Estados Unidos Continetais, o autor brinca com o que seria esse mundo pós-apocalíptico, com uma Cuba que se tornou o centro financeiro do mundo (ainda sob a batuta de Fidel), uma Coréia do Norte que virou um ponto silencioso no mapa (ninguém sabe o que houve com os norte coreanos e ninguém quer entrar lá pra descobrir), uma Rússia que virou um Sacro Império e um Japão reinstalado em algum lugar da Polinésia.


Depois do cinema, desde “Entrevista com o Vampiro”, ter estragado a mitologia de Bram Stocker com vampiros que vão da metrossexualidade a emos assumidos, é bom ver que os monstros humanos estão recolocados no lugar assustador de onde nunca deveriam ter saído. Filme e livro são extremamente divertidos.

domingo, 23 de junho de 2013

Socializar o transporte público é a solução?

“Fatos são teimosos; sejam quais forem nossos desejos, nossas tendências ou os ditames de nossa paixão, eles não podem alterar os fatos e os dados concretos.” (John Adams)

Nas últimas semanas temos assistido uma série de protestos pelo Brasil, desencadeada pelo aumento nas tarifas de transporte, e capitaneada pelo Movimento Passe Livre. Ninguém ainda logrou uma análise definitiva desse movimento, que ao contrário de outros movimentos sociais da história recente brasileira, se define como descentralizado, “horizontalizado” e apartidário. Assim, não é objetivo deste artigo tentar uma definição que pessoas melhores do que eu não alcançaram. O que é certo é que esse movimento de há muito perdeu o controle da agenda. Na prática, o MPL juntou 2.000 pessoas na Avenida Paulista no dia 6 de junho; depois da repressão policial ter agido como catalisador de um sentimento difuso de insatisfação geral com a política e com os partidos políticos, os manifestantes originais foram engolidos, em 20 de junho, por outros 100 mil (em São Paulo) com pautas diversas, desde a revolta com os gastos da Copa até a famigerada “cura gay”. A pauta revolucionária original acabou diluída numa revolta contra o estado e a corrupção, conforme leitura da própria presidente em pronunciamento de 21 de junho.

Logo, ao invés de tentar decifrar a esfinge, vamos tentar quebrar alguns mitos com fatos. Principalmente, vamos procurar rechaçar a afirmação segundo a qual a solução para o transporte público nas capitais é política e não técnica.

Um pouco de história é necessária aqui. O Movimento Passe Livre (MPL) surge com uma carta de princípios redigida pela Plenária Nacional pelo Passe Livre, no V Fórum Social Mundial, em 28 de janeiro de 2005, em que assim se define:

“O Movimento Passe Livre é um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.”

O objetivo do MPL é claro:

“O MPL não tem fim em si mesmo, deve ser um meio para a construção de uma outra sociedade. Da mesma forma, a luta pelo passe-livre estudantil não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como direito para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da iniciativa privada, sob controle público (dos trabalhadores e usuários).
O MPL deve ter como perspectiva a mobilização dos jovens e trabalhadores pela expropriação do transporte coletivo, retirando-o da iniciativa privada, sem indenização, colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da população. Assim, deve-se construir o MPL com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem vigente. Portanto, deve-se participar de espaços que possibilitem a articulação com outros movimentos, sempre analisando o que é possível fazer de acordo com a conjuntura local.”

O MPL, portanto, é um movimento de extrema-esquerda, de viés marxista-leninista, que visa a expropriação (estatização) do transporte público, sem indenização, como forma de colocá-lo sob controle dos “trabalhadores e da população”. Pretende transcender os limites do “capitalismo”, visando uma “revolução” contra a “ordem vigente.” Surgiu pleiteando a gratuidade para os estudantes, mas hoje defende a gratuidade para todo e qualquer usuário.

Ou seja, o pleito do MPL passa pela estatização (transferência do controle ao estado) dos meios de transporte, e pela socialização (diluição pela sociedade) de seus custos. Como fica claro, a socialização dos meios de transporte é encarada apenas como um começo, um "instrumento inicial" numa pauta revolucionária, condizente com a comemoração ao som dao hino da Internacional Socialista cantado pelos líderes do movimento em um bar no centro de São Paulo, após o anúncio da revogação do aumento.

Inútil citar aqui as proibições constitucionais à expropriação sem indenização e ao confisco, visto que o movimento é revolucionário, e busca justamente subverter a ordem legal, fora de um processo institucional "regular" (devido processo legislativo e eleitoral - não é coincidência que os principais partidos políticos na base do movimento tenham sido rechaçados pela maioria dos eleitores nas urnas).

Ao menos parte disso não é novo, já que o transporte coletivo na cidade de São Paulo, pela maior parte da história, foi de fato estatizado. Até 1946 o transporte público na capital era operado exclusivamente pela São Paulo Tramway Light and Power Company Limited. Tratava-se de empresa privada que operava um sistema com cerca de 500 bondes na capital. O fato é que os ônibus clandestinos começavam a aparecer, e a Light não tinha mais interesse nem na operação dos bondes, nem na (cara) implantação de novas linhas de ônibus, sem o estabelecimento de um monopólio que lhe garantisse um retorno mínimo sobre os investimentos. A companhia, assim, não tinha interesse na renovação de seu contrato, que terminava em 1941, e que acabou sendo extraordinariamente prorrogado por determinação do governo federal, a fim de se evitar um vácuo nos transportes da capital paulista.

Em 1946 foi criada a Companhia Municipal de Transportes Coletivos, que em 12 de março de 1947 incorporou todo o patrimônio da São Paulo Tramway Light and Power Company Limited. Tínhamos então, na prática, um monopólio estatal na questão da mobilidade urbana, na medida em que poucos empresários foram autorizados a operar linhas, e ainda assim somente distantes do centro. Na década de 50, a CMTC chegou a deter 90% do transporte público da capital.

E como era o transporte público então? A marca da CMTC, como os que têm mais de 30 anos talvez se lembrem, era a precariedade. Em primeiro de agosto de 1947, uma população revoltada tomou as ruas da cidade, depois de um aumento de 100% nas tarifas, promovido pelo poder público logo após a estatização. Os melhores veículos, comprados nos EUA e que contavam com direção hidráulica e suspensão a ar, atendiam apenas linhas consideradas “nobres”, como a Centro-Jardim América. Em 1958, a CMTC com 12 mil funcionários e em crise financeira estava sucateada, não renovava a frota e nem conseguia importar peças e acessórios para os ônibus quebrados. Em 1957, da frota de 1.333 ônibus diesel, somente 821 funcionavam. A empresa também tinha 110 ônibus elétricos e 210 bondes que ainda não tinham sido tirados de circulação por causa da incapacidade de substituir a frota.

E foi assim ao longo de sua história. Transporte precarizado por ônibus velhos, desconfortáveis e lotados, que falhavam em atender as regiões mais distantes da cidade.

Em 1993, o processo de precarização atinge seu auge. O sistema foi municipalizado e, em 1994 finalmente (re)privatizado, loteado entre 47 viações privadas, que detém até hoje o monopólio em seus respectivos itinerários, em contratos de 10 anos. Os contratos atualmente vigentes foram celebrados na gestão da prefeita Marta Suplicy.

Logo, nem as manifestações nem os pleitos atualmente vistos são propriamente novos, ao contrário. Resta saber se a segunda parte das reinvidicações do MPL, que envolvem a socialização dos custos do sistema, é possível, ou, ainda melhor, desejável

Independentemente de quem administra as linhas de transporte na cidade, o sistema tem custos inevitáveis (salários, combustível, manutenção, impostos, etc.) que devem evidentemente ser pagos. Estas despesas hoje são custeados em parte pelo usuário, através da tarifa individual, em parte pelo contribuinte, através de subsídios, destinados principalmente a custear as gratuidades (como a de idosos) e as reduções (como as de estudantes), além das integrações proporcionadas pelo Bilhete Único. Os subsídios previstos no orçamento da capital ao longo do ano de 2013 são de R$ 1,2bi, e, se a tarifa permanecer congelada (como de fato está desde 19 de junho), devem chegar as R$ 2,7bi até 2016, segundo estimativas da própria prefeitura.

Ou seja, na prática, poucas pessoas pagam a tarifa “cheia”. Idosos, pessoas com deficiência e crianças até 6 anos não pagam. Estudantes tem desconto de 50% na tarifa. E cada usuário que usa mais de uma condução (até um máximo de 4) no período de 3 horas na capital, dilui o custo da tarifa individual entre elas.

O custo do sistema pode ser facilmente calculado retirando-se o subsídio (ou seja, gratuidades, reduções e benefícios do Bilhete Único) e multiplicando-se o valor resultante pelo número de usuários únicos. Assim, sem o subsídio da prefeitura, cada usuário deveria pagar o valor de R$ 4,13 para uma viagem, considerando-se o custo de R$ 32 mil para manutenção de cada um dos 15 mil ônibus da frota.

Independentemente da concepção adotada para o transporte (se público, privado ou misto, socializado ou não), esse custo não desaparece. Alguém paga. Resta saber se é melhor que o usuário pague, ou se é melhor diluir esse custo entre toda a sociedade, instituindo-se a tarifa zero (ou “catraca livre”, que é um eufemismo muito mais simpático e palatável).

Num sistema de “tarifa zero”, todo o custo do sistema seria suportado pelo contribuinte. Projeto assim foi proposto pela então prefeita Luiza Erundina em 1990, e previa dobrar-se o Imposto Predial e Territorial Urbano, constituindo um Fundo de Transportes que custearia o sistema. O projeto enfrentou forte resistência da sociedade, e sequer foi submetido a votação.

Há ainda quem proponha custear a tarifa através do aumento do IPVA. Esse mecanismo, segundo seus defensores, teria ainda a vantagem óbvia de desestimular o uso do transporte individual, amenizando a questão da poluição e do trânsito nas grandes capitais.

Em qualquer caso, os defensores da socialização argumentam que os recursos economizados pelos passageiros ainda serviriam como estímulo econômico.

Essas ideias padecem de diversos problemas de ordem prática, facilmente evidenciados.

Primeiro, a arrecadação e administração dos impostos é um processo muito menos transparente do que o pagamento de tarifas pelos usuários. Através de uma operação elementar, pudemos chegar aos custos efetivos por usuário e por veículo, anteriormente neste mesmo texto. As eventuais dificuldades dessa operação, na verdade, decorrem dos subsidios prestados pelo Poder Público, que acabam por distorcer os preços.

Por outro lado, é impossível saber, por exemplo, quanto o estado efetivamente gasta com o sistema único de saúde, por usuário. É possível estimar um gasto per capita, mas esse valor de forma alguma corresponde ao gasto efetivo. Isso porque é impossível calcular as perdas do sistema, geradas, por exemplo, por compras mal-feitas (decorrentes do nosso draconiano sistema de licitações), por falhas na arrecadação de impostos (sonegação) e por desvios de recursos por agentes públicos não fiscalizados, além de ineficiências inerentes a um sistema com pouca ou nenhuma fiscalização e quase que totalmente desprovido de metas de qualidade e produtividade.

Isso se traduz num sistema caro ao contribuinte, proporcionalmente ao serviço prestado. O Brasil, por exemplo, empenha cerca de 15% seu produto interno bruto no custeio do sistema único de saúde. Isso está abaixo do índice de alguns países desenvolvidos, como o Canadá, que gasta cerca de 20% de suas riquezas com o mesmo serviço. Entretanto, quase 50 milhões de pessoas, ou ¼ da população brasileira, foram empurradas a algum tipo de assistência médica suplementar (plano de saúde), em virtude da baixa qualidade do serviço público. Ou seja, embora na prática tenham direito a ser atendidas pelo sistema público (e embora, de fato, alguns procedimentos só possam ser realizados na rede pública), os 15% que o Brasil gasta do seu PIB com o SUS na verdade se dividem entre ¾ de sua população. Isso quase iguala nosso gasto per capita com saúde ao do Canadá, mas com resultados obviamente muito diferentes.

Em outras palavras, como regra geral, o estado é um gestor ruim dos recursos alheios, e o estado brasileiro tem sido um gestor ainda pior ao longo da história.

Ainda, há uma falácia implícita na reinvidição de que estatizar o transporte é colocá-lo sob controle público. E essa falácia não é em hipótese alguma ideológica. Isso porque o estado é uma entidade fictícia (pessoa jurídica de direito público) controlada por partidos políticos, que nada mais são que pessoas jurídicas de direito privado. Ou seja, por sua própria natureza, o estado tem “dono”, e esses donos são particulares, com interesses privados. Qualquer partido político persegue o bem comum com tanto afã quanto uma empresa privada o perseguiria, ou seja, somente na medida em que o “bem comum” esteja associado com seus objetivos particulares. O principal objetivo de um partido político é acender ao poder, e, uma vez atingido esse objetivo, lá manter-se. Com frequência  os partidos sacrificarão o bem comum sem pestanejar para atingir esses objetivos (como tem reiteradamente provado ao longo da história).

Assim, uma empresa estatizada não é uma empresa de todos (“trabalhadores e usuários”, como quer o MPL), mas é uma empresa de alguns poucos (no caso, dos partidos que ocupam ocasionalmente o poder). E a desvantagem maior é que as empresas, em geral, são muito mais fiscalizadas que o poder público: uma empresa de capital aberto, por exemplo, é auditada por seus acionistas independentes (as vezes na casa dos centenas ou milhares) e pela Comissão de Valores Mobiliários, que por lei deve publicar seus relatórios num banco de dados centralizado. O poder público, ao contrário, é auditado por tribunais de contas cujos membros são escolhidos e nomeados pelos próprios agentes públicos.

A diferença é tão patente, que nos países capitalistas centrais se diz que uma empresa torna-se pública quando abre seu capital na bolsa de valores. Nesse cenário, qualquer cidadão pode, de fato, tornar-se sócio, dono desta companhia, verificando e fiscalizando sua gestão e resultados, ao contrário de um processo de estatização, quando uns poucos agentes públicos detém o controle da companhia, com pouca ou nenhuma transparência.

Existe ainda um sério problema em colocar na conta dos usuários de transporte individual os custos de gratuidade do transporte público. O IPVA pago em São Paulo é o maior do Brasil, com uma alíquota de 4% sobre o valor do veículo. A prefeitura estima em cerca de R$ 6 bilhões o custo em socializar o transporte público. Isso é metade de toda a arrecadação de IPVA prevista no estado de São Paulo ao longo do ano de 2013. Ou seja, se a receita do IPVA fosse destinada a socializar o transporte público, veríamos um aumento de 50% na alíquota já alta do imposto.

Isso deprimiria fortemente a base de usuários que optam por esse sistema: por que, afinal, alguém pagaria tão caro para ter um carro, tendo à sua disposição transporte público gratuito e de qualidade? Se num primeiro momento um nobre objetivo parecesse ter sido alcançado, no médio e longo prazo veríamos uma diminuição radical no número de veículos em circulação, “matando” a fonte de financiamento do sistema. Ou seja, não se trata de um modelo sustentável.

Além disso, não haveria estímulo econômico algum, na medida em que os recursos “economizados” pelos passageiros do transporte público de um lado seriam drenados dos usuários de transporte individual de outro. Seria como tentar salvar o paciente moribundo com uma transfusão de sangue do braço direito para o braço esquerdo.

A conclusão a que se chega é simples: estatizar e socializar o transporte público levaria a piora do serviço e a aumento dos custos, sacrificando ainda mais a transparência do sistema.

A solução possível é justamente a inversa: aumentar a competição privada, pondo fim aos oligopólios estimulados e regulamentados pelo poder público. Se as viações, ao invés de repousarem na falta de competição e ausência de risco garantida pelo estado forem obrigadas a disputar a preferências dos passageiros, haverá espaço para queda da tarifa e melhoria do serviço oferecido à população.


Mas "um erro antigo é sempre mais popular que uma nova verdade" - Provérbio Alemão.

(Com a revisão e colaboração de Renato Paulo: http://www.facebook.com/nato21?fref=ts)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Estamos todos nos escondendo por trás dos nossos "Gorila Glass"

Texto de autoria de John Moore Williams, originalmente publicado em https://medium.com/i-m-h-o/230261a4c170.

A tradução é minha e sem qualquer compromisso ou garantia.

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Houve um tempo em que eu visitava sua casa ou apartamento, e só de dar uma olhada em volta, em prateleiras de livros, racks de CDs, caixas de LPs, etc., se aprendia um monte de coisas sobre você.

Aquelas pilhas desarrumadas ao lado da sua cama ou mesa de café, os gabinetes de vidro onde as fitas VHS se organizavam sozinhas como espinhas de falsos livros, tudo isso se comunicava comigo. Me diziam se você gostava mais de novelas baratas ou tratados profundos; me diziam pra esperar jazz durante o jantar, uma sobremesa psicodélia, ou Philip Glass juntamente com uma taça de Porto. Essas embalagens com frente de vidro me diziam se eu deveria sugerir alguma agitação após o jantar ou, ao invés, uma leitura – ou talvez algumas rodadas de 21.

Essas coisas me diziam isso tudo abertamente. Os livros gritavam de suas prateleiras empoeiradas, os discos convidavam a uma mexida em suas capas amarrotadas. Os filmes e Cds colaboravam numa história pessoal de mídia.

Houve um tempo em que esse passeio era minha primeira prioridade ao visitar uma nova casa. Claro, a conversa fluía ou congelava enquanto eu embarcava em minhas pesquisas; era importante que você soubesse que eu não pretendia consumi-la como um sujeito passivo. Suas prateleiras de livros e Cds não eram como frios instrumentos de metal numa sala cirúrgica: eram trampolins, fases em que as várias atrizes em você lutavam e se empenhavam, cada uma tentando dar início a uma nova tangente conversacional. Mas tudo isso estava lá, me convidando para me sentar e consumir, ou dar um passo adiante no palco para o nosso diálogo.

E a cada momento eu sabia que isso tudo eram atuações mais ou menos conscientes, frutos de cuidadosas considerações. Como a reforma de uma casa ao contrário, isso tudo dizia respeito a uma identidade que você estava disposta a compartilhar confortavelmente. Os Foucaults ou Derridas na sala de estar se ajustam à decoração, mas lá estavam eles, convidando a questionamentos ou exclamações de “ó, eu também gosto deste!”

Chegou o tempo, contudo, em que estas máscaras se quebraram, os livros se estragaram, rasgados; se foram.

Para serem substituídos, claro, mas pelo quê? Camadas brilhantes de Gorilla Glass; telas de toque que oferecem o melhor tempo de resposta, marcadas apenas pela quase invisível marca dos seus dedos; superfícies mudas e elegantes, nada traindo a um olhar, além da promessa de um conteúdo vasto – e a garantia de que isso é uma parede, uma porta trancada.

Agora, eu preciso pedir sua permissão para mergulhar na sua coleção de música, sua “e-ink”, seus jogos. Você precisa me emprestar a senha, ou destravar a experiência para mim. E isso é apenas se eu tiver coragem de pedir, uma vez que o tesouro de dados por trás desse vidro representa mais do que uma coleção de mídia. Entre ligações e mensagens de texto enviadas e recebidas, entre as contas de e-mail permanentemente abertas, e entre redes sociais de livre acesso, você assume grandes riscos ao me deixar passar pela tela de travamento. Nós centralizamos nossas vidas nesses pequenos caixões, e colocá-los nas mãos de outras pessoas é um mergulho suicida, um ato de tremenda confiança.

Cada vez menos o indivíduo ocupa um espaço ou espaços, espaços que o Google já pode mapear. O glorioso indivíduo diminuiu facilmente para caber num bolso. E o que ele mostra não é mais uma estética pessoal, mas um relacionamento de marca, uma identidade fundada na relação não com a rica história de criatividade humana, mas com a indústria tecnológica multinacional.


Não me entenda mal – eu amo meus equipamentos eletrônicos. Mas nunca deveríamos esquecer do que perdemos quando ganhamos. E é problema nosso encontrar outras formas de nos externalizar de forma segura.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Fábula das Abelhas, de Bernard de Mandeville

Poema de 1714, de autoria do escritor holandês Bernard de Mandeville. Conta a história de uma colmeia que prosperava com os "vícios" (o comportamento egoísta) das abelhas. Quando estas se tornaram abelhas virtuosas (não agiam mais em interesse próprio, mas pelo bem de todas), a colmeia desandou.

Essa ideia está no centro do capitalismo liberal defendido por Adam Smith em 1776, em sua obra "A riqueza das nações". O homem, com sua liberdade, rivalidade e desejo de ganhar, é "guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção" - ele age de modo involuntário em nome do interesse maior da sociedade. Em outras palavras, agindo egoisticamente em busca de seu próprio bem, o homem acaba promovendo o bem comum. Ao contrário, quando uma força institucionalizada tenta promover uma virtude humana inexistente (como o fazem todas as utopias coletivistas) em nome da construção de uma sociedade melhor, o resultado é - sempre e invariavelmente - o oposto daquilo que se almejava originalmente.

Uma grande colméia, repleta de abelhas,
Que viviam com luxo e comodidade,
Porém eram tão famosas por leis e armas
Quanto por copiosos e precoces enxames,
Era tida como o grande berço
Das ciências e da indústria.
Não havia abelhas que possuíssem governo melhor,
Maior volubilidade ou menos contentamento;
Não eram escravas da tirania,
Nem governadas pela desenfreada Democracia,
E sim por reis, que não podiam errar,
Pois seu poder era restrito por leis.
Esses insetos viviam como os homens,
E todas as nossas ações executavam em miniaturas;
Faziam tudo o que se faz na cidade,
E o que é da alçada da espada ou toga,
Embora os trabalhos engenhosos dos membros minúsculos
De tão ligeiros escapassem à vista humana.
Entretanto, não temos máquinas, trabalhadores,
Navios, Castelos, armas, artífices,
Ofício, ciência, loja ou instrumento
Para os quais não possuíssem equivalente;
Estes, sendo sua língua desconhecida,
Devem ser chamados com os nomes que damos aos nossos.
Como concessão, entre outras coisas,
Queriam dados, mas tinham reis,
E estes tinham guardas, do que se pode, acertadamente,
Concluir que algum jogo havia,
A menos que exista um regimento
De soldados que não pratique nenhum.
Grandes números abarrotavam a fértil colméia,
Porém essa multidão fazia com que prosperassem;
Milhões empenhavam-se em satisfazer
Mutuamente sua cupidez e vaidade,
Enquanto outros milhões labutavam
Para ver destruídas suas obras.
Abasteciam metade do universo,
Porém tinham mais trabalho que trabalhadores.
Alguns, com grande capital e pouco esforço,
Lançavam-se a negócios de fabulosos lucros;
Outros estavam condenados à foice e à espada,
E a todos esses árduos e cansativos ofícios
Nos quais, voluntariamente, desgraçados suam dia após dia,
Esgotando as forças e os membros para poderem comer,
Enquanto outros se dedicavam a mistérios
Aos quais poucos encaminhavam aprendizes,
Que não requeriam outro cabedal senão o descaramento,
E podiam estabelecer-se sem um centavo sequer,
Como trapaceiros, parasitas, gigolôs, jogadores,
Punguistas, falsários, charlatães, adivinhos
E todos os que, inimigos
Do trabalho honesto, astuciosamente
Convertiam em seu próprio benefício
O trabalho do afável e incauto próximo.
A esses chamavam velhacos, mas exceto pelo nome,
Os austeros industriosos eram iguais;
Todos os negócios e cargos tinham algo de desonesto,
Nenhuma profissão era isenta de embustes.
Os advogados, cuja arte tinha por base
Suscitar contendas e dividir causas,
Opunham-se a todos os registros, pois as trapaças
Poderiam dar mais trabalho com propriedades hipotecadas,
Como se fosse ilegal que o patrimônio de alguém
Fosse conhecido sem uma ação judicial.
Postergavam deliberadamente as audiências,
Para embolsar polpudos honorários,
E, para defender uma causa iníqua,
Examinavam e observavam as leis,
Como ladrões que espreitam lojas e casas
Para descobrir qual o seu ponto fraco.
Médicos valorizavam fama e riqueza
Acima da saúde dos depauperados pacientes
Ou de sua própria habilidade; a maior parte estudava,
Em vez de as regras da arte,
Olhares graves e pensativos e atitudes apáticas,
Para ganhar a simpatia do boticário
E elogios das parteiras, sacerdotes
E todos os que lidavam com nascimentos e funerais,
Suportar a incessante tagarelice da tribo,
E ouvir a tia da dona da casa prescrever,
Com um sorriso afetado e um cortês “como vai?”
Para bajular toda a família
E, o que é o pior de todos os tormentos,
Agüentar a impertinência das enfermeiras.
Entre os muitos sacerdotes de Júpiter,
Contratados para invocar as bênçãos do céu,
Alguns havia sábios e eloqüentes,
Mas milhares lascivos e ignorantes;
Contudo, todos preenchiam os requisitos que podiam ocultar
Sua preguiça, luxúria, avareza e orgulho,
Pelos quais eram tão famosos quanto alfaiates
Por sonegar retalhos e marinheiros por rum.
Alguns, magros e pobremente vestidos,
Rezavam misticamente por pão,
Com isso querendo dizer uma farta despensa,
Contudo, literalmente, não recebiam nada além.
E, enquanto esses santos labutadores passavam fome,
Alguns preguiçosos a quem serviam
Abandonavam-se ao ócio, com todas as graças
Da saúde e da fartura nas faces.
Os soldados, que eram forçados a lutar,
Se sobrevivessem, auferiam honrarias,
Embora alguns, que se esquivavam de brigas sangrentas,
Houvessem sido feridos na fuga.
Alguns generais valentes combatiam os inimigos,
Outros aceitavam suborno para deixa-los escapar;
Alguns aventuravam-se sempre onde a luta era mais renhida,
Perdiam ora uma perna, ora um braço,
Até que, totalmente inválidos, eram postos de lado,
E viviam com a metade do soldo,
Enquanto outros nunca apareciam no campo de batalha,
E ficavam em casa recebendo em dobro.
Seus reis eram servidos, porém astutamente
Logrados pelo seu próprio ministério;
Muitos, que pelo seu bem-estar arduamente trabalhavam,
Roubavam a própria coroa a quem salvavam;
As pensões eram pequenas, e eles viviam à larga,
Porém jactavam-se de sua honestidade,
Chamando, sempre que extrapolavam seus direitos,
Gratificação a seu logro matreiro;
E, quando entendiam seu jargão,
Mudavam o nome para emolumento,
Relutantes em ser concisos ou explícitos
Com tudo o que se referisse a ganhos;
Pois não havia abelha que não quisesse
Ganhar mais, não direi, do que merecia,
Porém do que ousava permitir que soubessem
Aqueles que lhes pagavam, como jogadores
Que, embora jogando limpo, nunca revelam
Aos perdedores o quanto ganharam.
Mas quem pode enumerar todas as suas fraudes?
O próprio material que na rua
Vendiam como esterco para enriquecer o solo,
Freqüentemente, como descobria o comprador,
Era sofisticado com um quarto
De pedras e argamassa imprestáveis,
Embora pouca razão tivesse para queixar-se
Aquele que também vendia gato por lebre.
A própria Justiça, célebre pela equanimidade
Embora cega não perdera o tato;
Sua mão esquerda, que deveria sustentar a balança,
Deixara-a muitas vezes pender, subornada com ouro;
E, conquanto parecesse imparcial,
Quando se tratava de punição corporal,
Alardeava seguir curso regular
Em assassinatos e todos os crimes violentos,
Porém alguns, primeiro mandados ao pelourinho por desonestidade,
Eram enforcados na própria corda com que haviam sido açoitados.
Contudo, pensava-se, a espada que ela empunhava
Reprimia apenas os pobres e desesperados
Que, impelidos por mera necessidade,
Eram amarrados à árvore dos desgraçados
Por crimes que não mereciam tal destino,
Senão para proteger os ricos e poderosos.
Assim, o vício imperava em cada parte,
Embora o todo fosse um paraíso;
Incensados na paz, temidos na guerra,
Tinham o respeito dos estrangeiros,
E, na abundância de riqueza e vidas,
Eram a força preponderante entre todas as colméias.
Tais eram as bênçãos daquele estado
Que seus crimes conspiravam para torna-lo grandioso;
E a virtude, que com a política
Aprendera milhares de artifícios sutis,
Tornara-se, pela feliz influência,
Amiga do vício, e desde então
O pior elemento em toda a multidão
Fazia algo para o bem comum.
Era essa a estatística que regia
O todo, do qual cada parte reclamava;
Isso, como na harmonia musical,
Conciliava as dissonâncias no geral.
Grupos diretamente opostos
Ajudavam-se mutuamente, como por perversidade,
E a temperança e a sobriedade
Serviam à embriaguez e à gula.
A avareza, raiz do mal,
Esse maldito, perverso, pernicioso vício,
Era escrava da prodigalidade,
O pecado nobre; enquanto o luxo
Empregava um milhão de pobres,
E o orgulho odioso, mais um milhão.
A própria inveja e a vaidade
Eram ministros da indústria;
Sua extravagância predileta, a volubilidade
No comer, vestir-se e mobiliar,
Tornara-se, vício estranho e ridículo,
A própria roda que movia os negócios.
Suas leis e seus trajes eram, igualmente,
Coisas mudáveis,
Pois, o que em certo momento era bem visto,
Meio ano depois tornava-se crime.
Entretanto, enquanto assim alteravam suas leis,
Sempre encontrando e corrigindo imperfeições,
Através da inconstância reparavam falhas
Que a prudência não poderia prever.
Assim, o vício fomentava a engenhosidade
Que, unida ao tempo e ao trabalho,
Propiciava as comodidades da vida,
Seus verdadeiros prazeres, confortos e facilidades,
A tal ponto que mesmos os pobres
Viviam melhor que os ricos de outrora,
E nada mais havia a acrescentar-se.
Como é vã a felicidade dos mortais!
Tivessem eles noção dos limites da bem-aventurança,
E de que a perfeição, cá embaixo,
Está acima do que os deuses podem conceder,
E os queixosos animais ter-se-iam contentado
Com ministros e governo.
Porém eles, a cada sobrevento,
Como criaturas irremediavelmente perdidas,
Maldiziam os políticos, o exército, as frotas,
Enquanto cada um gritava “Abaixo os desonestos!”,
Apesar de cônscio dos próprios defeitos,
Dos demais, barbaramente, não tolerava nenhum.
Um, que conseguira patrimônio principesco
Enganando o patrão, o rei e os pobres,
Atrevia-se a bradar “Que a terra pereça
Por todas as suas fraudes!”; e quem pensais”
Que o patife pregador do sermão censurava?
A um luveiro, que vendera couro grosseiro por pelica!
A menor coisa feita incorretamente,
Ou que obstasse aos negócios públicos,
E já todos os velhacos gritavam disfarçadamente:
“Oh, Deus! Se ao menos houvesse honestidade!”
Mercúrio sorria ante a imprudência,
E outros chamavam-na falta de senso,
Sempre a protestar contra o que amavam.
Porém, Júpiter, cheio de indignação,
Finalmente, irritado, jurou livrar
Da fraude a vociferante colméia. E assim o fez.
No mesmo momento, ela se foi
E a honestidade encheu seus corações;
Revelaram-se-lhes, como na árvore do conhecimento,
Os crimes dos quais se envergonharam,
E que então, em silêncio, confessaram,
Enrubescendo ante sua torpeza,
Como crianças que, desejando esconder suas faltas,
Pela cor denunciam os pensamentos,
Imaginando, ao serem olhados,
Que os outros vêem o que fizeram.
Porém, oh deuses! Que consternação!
Quão grande e súbita foi a alteração!
Em meia hora, no país inteiro,
A carne caiu um pêni por libra;
A máscara da hipocrisia despencou,
Do grande estadista ao palhaço;
E alguns, tão conhecidos pela aparência afetada,
Pareceram estranhos com a sua natural.
O tribunal ficou silencioso a partir de então,
Pois agora os devedores, voluntariamente, pagavam
Mesmo o que os credores haviam esquecido,
E estes desobrigavam os que não podiam saldar as dívidas.
Os que estavam sem razão calaram-se
E desistiram dos esfarrapados e vexatórios processos,
Com o que, já que ninguém prospera menos
Do que advogados em uma colméia honesta,
Todos, exceto os que tinham grandes posses,
Partiram, levando consigo seus tinteiros.
A justiça enforcou alguns, outros libertou,
E, após esvaziarem-se as prisões,
Não mais sendo necessária sua presença,
Retirou-se com todo o seu cortejo e pompa.
Na vanguarda marcharam ferreiros, com cadeados e grades,
Grilhões e portas com chapas de ferro;
A seguir, carcereiros, guardas e ajudantes;
Á frente da deusa, a alguma distância,
Seu fiel ministro principal,
Dom Algoz, o grande executor da lei,
Empunhando não a espada imaginária,
Mas seus próprios instrumentos, o machado e a corda;
Então, em uma nuvem, a bela de olhos vendados:
A justiça em pessoa, impelida pelo ar;
Em volta de sua carruagem, e na retaguarda,
Seguiram sargentos, esbirros de todas a espécie,
Beleguins e todos aqueles funcionários
Que das lágrimas arrancam seu sustento.
Embora vivesse a medicina enquanto houvesse doentes,
Ninguém prescrevia senão abelhas habilitadas,
As quais dispersaram-se tanto pela colméia
Que nenhuma precisava de condução;
Deixaram de lado controvérsias inúteis e esforçaram-se
Por livrar os pacientes do sofrimento;
Abandonaram as drogas produzidas em países desonestos
E usaram os produtos da sua própria terra,
Sabendo que os deuses não mandam doenças
A nações sem remédios.
O clero despertou da preguiça;
Não mais delegaram suas incumbências às abelhas auxiliares;
Isentos de vício, serviram pessoalmente
Aos deuses, com oração e sacrifício.
Todos os que eram inaptos, ou sabiam
Serem dispensáveis seus serviços, retiraram-se;
Nem havia trabalho para tantos
(se é que os honestos precisam de algum).
Somente uns poucos permaneceram com o sumo-sacerdote,
A quem os demais juraram obediência;
Ele próprio ocupou-se de assuntos divinos,
Cedendo a outro os negócios de estado.
Não escorraçou de sua porta nenhum faminto,
Nem roubou aos pobres seu salário;
Em sua casa os esfomeados foram alimentados,
Os subordinados tiveram pão sem restrições,
E os viajantes necessitados, cama e comida.
Entre os grandes ministros do rei
E todos os administradores subalternos
A mudança foi grande pois, frugalmente,
Passaram a viver de seu salário.
Que uma abelha pobre viesse dez vezes
Pedir o que lhe era devido, uma quantia irrisória,
E por um escrivão bem pago fosse obrigada
A dar algo por fora ou nunca receber,
Seria agora considerado absoluta desonestidade,
Embora antes fosse prerrogativa.
Todos os lugares, antes administrados por três,
Que vigiavam mutuamente suas velhacarias,
E muitas vezes, por camaradagem,
Promoviam os roubos uns dos outros,
Felizmente passaram a ser geridos por um só;
Com isso, foram-se outros milhares.
Nenhuma honra agora poderia satisfazer-se
Em viver devendo pelo que gastava;
Librés ficaram expostas em lojas de penhores,
Desfizeram-se de carruagens por uma pechincha,
Venderam cavalos magníficos às parelhas,
E casas de campo para saldar dívidas.
Evitou-se o gasto inútil tanto quanto a fraude;
Não mais mantiveram exércitos no exterior;
Riram-se da estima dos estrangeiros
E das glórias vãs conseguidas com guerras;
Lutaram, mas pelo bem da pátria,
Quando o direito e a liberdade estavam em jogo.
Olhai agora a gloriosa colméia e vede
Como se conciliam honestidade e negócios:
O espetáculo terminou; esvaiu-se rapidamente,
E apresentou-se com face bastante diversa,
Pois não só foram-se aqueles
Que somas vultosas gastavam anualmente,
Mas multidões, que neles tinham seu ganha-pão,
Foram diariamente forçadas a fazer o mesmo;
Inutilmente buscara outros ofícios,
Pois estavam todos superlotados.
Caiu o preço da terra e das casas;
Palácios maravilhosos, cujos muros,
Como os de Tebas, foram feitos para o espetáculo.
Puseram-se para alugar, enquanto os outrora garridos,
Bem estabelecidos deuses domésticos ficariam
Mais satisfeitos em morrer no fogo do que ver
A modesta inscrição na porta
Sorrir das soberbas que eles exibiam.
A construção civil foi aniquilada,
Não se empregaram mais artífices,
Nenhum pintor ganhou fama por sua arte,
Canteiros e entalhadores não se tornaram conhecidos.
Os que permaneceram tornaram-se moderados,
Esforçaram-se não para gastar, mas para viver,
E, tendo pago a conta da taverna,
Resolveram lá não mais entrar.
Nenhuma ex-noiva de taverneiro em toda a colméia
Pôde, então, usar tecidos de ouro e prosperar,
Nem perdulários adiantar tão grandes quantias
Para borgonhas e verdascos.
Foi-se o cortesão que com sua querida,
Diariamente ali jantava um banquete de natal,
Gastando, em duas horas de estada,
O que sustentaria o dia todo uma tropa de cavalaria.
O arrogante Cloé, que para viver à grande,
Fizera seu marido roubar ao Estado,
Agora, contudo, vendeu sua mobília,
Que fora saqueada nas Índias,
Reduziu o dispendioso cardápio,
E usou um ano inteiro os mesmo trajes duráveis:
A era da futilidade e do capricho passou,
E as roupas, bem como as modas, permaneceram.
Tecelões que produziam ricos brocados
E todos os ofícios subordinados
Extinguiram-se. Ainda reinava a paz e a abundância,
E tudo era barato, porém simples.
A bondosa Natureza, livre do jugo dos jardineiros,
Concedia todos os frutos no seu próprio tempo;
Contudo, raridades não se podia mais obter
Quando os esforços para consegui-las não eram pagos.
À medida que minguaram orgulho e luxo,
Gradativamente deixaram os mares,
Agora não os mercadores, mas companhias.
Fecharam fábricas inteiras.
Todas as artes e ofícios foram abandonados.
O contentamento, ruína da indústria,
Fê-lo apreciar seu estoque caseiro
E não buscar nem cobiçar mais.
Assim, poucos permaneceram na vasta colméia;
Não puderam manter nem a centésima parte
Contra as afrontas dos numerosos inimigos,
A quem, valentemente, enfrentavam,
Até encontrar algum refúgio bastante fortificado,
Onde morriam ou defendiam seu território.
Não houve mercenários em seu exército;
Bravamente, lutaram eles próprios.
Sua coragem e integridade
Foram finalmente coroadas com a vitória.
Triunfaram, porém não sem custo,
Pois milhares de abelhas pereceram.
Calejadas dos árduos trabalhos e exercícios,
Consideraram vicio a própria comodidade,
O que aperfeiçoou de tal modo sua moderação.
Que, para evitar extravagâncias,
Voaram para uma árvore oca,
Abençoadas com satisfação e honestidade.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O "Inferno" de Dante, revisitado pelo simbologista mais famoso do mundo

Robert Langdon está de volta em mais um passeio pela cultura ocidental e seus símbolos. E seu criador, Dan Brown, se consolida como o Ronald McDonald da literatura. Seus livros repetem sempre a mesma fórmula pasteurizada, mas são deliciosos, alimentam e você nunca enjoa.

Desta vez, Langdon acorda num hospital em Florença sem se lembrar de absolutamente nada das últimas 72 horas, devido a um ferimento sofrido na cabeça. A trama se desenvolve a partir deste ponto, enquanto o protagonista tenta descobrir porque está em Florença, e porque todos, inclusive seu próprio governo, querem vê-lo morto.

Os mesmos elementos das histórias anteriores estão presentes, tão iguais que Dan Brown poderia até mesmo patentea-los. Em lugar de Sophie Nouveau (de “O Código Da Vinci”), entra a médica Sienna Brooks, que guiará Langdon pelas ruas de Florença e Veneza enquanto lutam contra uma conspiração para exterminar metade da humanidade. Ao invés do Cardeal Aringarosa, entra o “Diretor”, chefe de um grupo internacional ultrassecreto conhecido como “Consórcio”, que provê serviços de legalidade duvidosa a quem esteja disposto a pagar por eles. O próprio Consórcio faz as vezes de uma espécie de maçonaria ou outra das sociedades secretas que povoam as páginas dos outros livros do mesmo autor, enquanto que uma assassina profissional e tenaz entra no lugar do albino Silas, que havia perseguido Langdon por todo o Velho Continernte em “O Código da Vinci”.

Se o filme “Código da Vinci” havia definitivamente sofrido de problemas de transposição da obra escrita para as telas (o que dizer da cena em que Langdon decifra a “keystone” como se estivesse jogando um videogame em forma de holograma?), em “Inferno” o autor aparentemente incorporou a linguagem cinematográfica em sua obra escrita. O livro começa com uma perseguição vertiginosa pelas ruas de Florença, digna de "Uma Saída de Mestre" (Italian Job, 2003), e quando o leitor precisa saber mais sobre Sienna Brooks, Langdon simplesmente acha sobre a escrivaninha da médica um dossiê que conta toda sua vida desde o nascimento, com fotos e ilustrações. Quem elabora e larga casualmente sobre a mesa um dossiê sobre sua própria vida? O recurso é eficaz e nos poupa de várias páginas de narrativa e diálogo, mas ao mesmo tempo passa a impressão de uma certa preguiça do autor em desenvolver um pouco melhor o tema.

O protagonista fica mais humano com algumas pérolas lançadas pelo autor ao longo do texto: mais do que um renomado professor de Harvard, Robert Langdon gosta de Lorena Mckeenit (pior pra ele), lê livros de Ross King e gosta dos filmes de Diane Lane. A tradução tem problemas pontuais (o manual de anatomia de Henry Grey, que dá nome a um famoso seriado, virou “Anatomia de Grey’s”), mas nada que atrapalhe.

Assim como acontece com os outros livros de Dan Brown, a abundância de referências visuais é fantástica. É difícil não parar a leitura a cada 5 minutos para buscar na Internet imagens dos locais e obras de arte descritos nas páginas do livro. Da mesma forma, é gratificante a sensação de descobrir “segredos” desses mesmos locais e obras, sob a direção de um professor de Harvard com um conhecimento enciclopédico sobre a matéria. Suspeito que a maior parte do conhecimento contido nas páginas do livro possa ser garimpado no Google, mas certamente sem a narrativa agradável e contextualizada proporcionada por uma obra de ficção bem escrita. Sem mencionar a vontade de reler a “Divina Comédia” de Dante sob uma nova perspectiva, ou mesmo o “Decamerão” de Boccacio, que se passa durante o período da Peste Negra na Europa.

A trama em si não é original. Quem já leu “Rainbow Six”, de Tom Clancy, vai se sentir à vontade com a temática, frouxamente baseada em alguma ciência (apenas o suficiente para conferir alguma verossimilhança). As teorias já refutadas de Thomas Malthus são resgatadas, juntamente com dados estatísticos mais recentes que confirmam que estamos à beira de uma crise demográfica com potencial de aniquilar a espécie. Numa boa coluna publicada na Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2013/05/1286803-somos-muitos-ou-somos-poucos.shtml), Contardo Calligaris cita estudos indicando que o quadro, na verdade, é o oposto disso (as taxas de natalidade estão em queda, e há certos governos, inclusive, que dão incentivos a casais que resolverem ter filhos). De qualquer forma, me arrisco a dizer que, em que pese a história ser movida por uma ameaça de bioterrorismo em escala planetária, o que impele o leitor ao fim é a viagem pela paisagem de Florença e, mais tarde, Veneza, com inúmeras referências a seus personagens históricos.


O final reserva ao leitor a reviravolta também já típica dos romances do autor. Pra não estragar nada, basta dizer que o desfecho é mais do satisfatório pra quem curtiu “O Código da Vinci” e “Anjos e Demônios”. Pra quem gostou desses, leitura recomendada.

domingo, 26 de maio de 2013

Falta de originalidade nos filmes de ação?

Acabei de assistir Star Trek - Além da Escuridão, e, bem - é mais um daqueles filmes em que você vai ao cinema esperando uma coisa e se depara com outra. Pra mim, isso começou com Skyfall. Sou fã incondicional dos filmes do James Bond, mas "Casino Royale", de 2006, definitivamente trouxe o personagem criado por Ian Flemming em 1953 para a nossa época. Num mundo meio niilista, pós-guerra fria, sem heróis nem vilões claramente estabelecidos, você espera que um agente secreto seja um assassino frio e com poucos escrúpulos. Como um Jason Bourne mais bem vestido. "Quantum of Solace", apesar do título brega, manteve a mesma pegada.

Aí veio Skyfall, e de repente Daniel Craig era de novo uma espécie de Roger Moore, com um vilão afeminado que faz luzes no cabelo. Admito que minha opinião é isolada, porque o filme está entre as 10 maiores bilheterias da história, e é sucesso de crítica. Mas eu passava sem aquela jogadinha de chapéu (quem usa chapéu hoje em dia?) e a cantada barata em cima da Moneypenny.

A segunda "decepção" veio com Homem de Ferro 3. A Marvel definitivamente fez um marketing promovendo um filme mais sombrio, explorando mais os conflitos e as escolhas psicológicas do personagem. O que veio foi só mais um blockbuster. Não que isso seja ruim. Ninguém despreza um filme de ação bem feito. E o que mais esperar de um filme baseado em HQ? Só que a Marvel prometeu mais. De quebra, quebraram a série de excelentes trilhas sonoras regadas a AC/DC e Black Sabbath (aquilo no começo do filme era música eletrônica?), acabaram com um dos vilões mais queridos de quem acompanhava o personagem nos quadrinhos, e inseriram a mais dispensável cena pós-crédito de todos os filmes da Marvel até aqui. Mais uma vez, minha opinião é isolada - o filme já está entre as 5 maiores bilheterias da história. Mas você aproveitará melhor o filme se tiver vinte e poucos anos do que mais de 30, como é o meu caso.

E aí chegamos a "Além da Escuridão". O filme todo é feito com muito esmero, desde a fotografia até os efeitos sonoros. O acabamento em si é impecável. Só não sei se o objetivo do diretor JJ Abrams (o mesmo de "Lost", e que já está contratado para a sequência de "Star Wars") era criar um território conhecido para os fãs da série, ou se faltou mesmo originalidade. Um artigo publicado no Medium por Esten Hurtle destaca a falta de imaginação nos gadgets mostrados no filme (https://medium.com/adventures-in-consumer-technology/7e7dc993b4fd). "Everyone in the movie walks around carrying an iPad. They have heads-up displays projected on glass. They talk to each other on cell phones. For a series that inspired a generation of engineers to go out and make these incredible things they saw on TV, it’s hugely disappointing to see this big-screen admission that they’ve run out of ideas." Em suma, ao que parece, nós já estamos usando a tecnologia de 200 anos adiante... O filme acabou de estrear então não vou contar detalhes da história, mas há mais momentos de "deja-vù" do que seriam recomendados.

É bom dizer, os 3 filmes citados são muito bons, principalmente pra quem gosta e acompanha as respectivas franquias. Mas os 3 padecem da mesma sina: são herdeiros de uma tradição, o que, por si só, gera enorme expectativa, incentivada pela propaganda dos estúdios. E, em que pesem os méritos de cada um, não entregam o prometido.