“Fatos são teimosos; sejam quais forem nossos desejos, nossas
tendências ou os ditames de nossa paixão, eles não podem alterar
os fatos e os dados concretos.” (John Adams)
Nas últimas semanas temos assistido uma série de protestos pelo
Brasil, desencadeada pelo aumento nas tarifas de transporte, e
capitaneada pelo Movimento Passe Livre. Ninguém ainda logrou uma
análise definitiva desse movimento, que ao contrário de outros
movimentos sociais da história recente brasileira, se define como
descentralizado, “horizontalizado” e apartidário. Assim, não é
objetivo deste artigo tentar uma definição que pessoas melhores do
que eu não alcançaram. O que é certo é que esse movimento de há
muito perdeu o controle da agenda. Na prática, o MPL juntou 2.000
pessoas na Avenida Paulista no dia 6 de junho; depois da repressão
policial ter agido como catalisador de um sentimento difuso de
insatisfação geral com a política e com os partidos políticos, os
manifestantes originais foram engolidos, em 20 de junho, por outros
100 mil (em São Paulo) com pautas diversas, desde a revolta com os
gastos da Copa até a famigerada “cura gay”. A pauta
revolucionária original acabou diluída numa revolta contra o estado
e a corrupção, conforme leitura da própria presidente em
pronunciamento de 21 de junho.
Logo, ao invés de tentar decifrar a esfinge, vamos tentar quebrar
alguns mitos com fatos. Principalmente, vamos procurar rechaçar a
afirmação segundo a qual a solução para o transporte público nas
capitais é política e não técnica.
Um pouco de história é necessária aqui. O Movimento Passe Livre
(MPL) surge com uma carta de princípios redigida pela Plenária
Nacional pelo Passe Livre, no V Fórum Social Mundial, em 28 de
janeiro de 2005, em que assim se define:
“O Movimento Passe Livre é um movimento horizontal, autônomo,
independente e apartidário, mas não antipartidário. A
independência do MPL se faz não somente em relação a partidos,
mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.”
O objetivo do MPL é claro:
“O MPL não tem fim em si mesmo, deve ser um meio para a construção
de uma outra sociedade. Da mesma forma, a luta pelo passe-livre
estudantil não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial
de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte
coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de
transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de
qualidade, como direito para o conjunto da sociedade; por um
transporte coletivo fora da iniciativa privada, sob controle público
(dos trabalhadores e usuários).
O MPL deve ter como perspectiva a mobilização dos jovens e
trabalhadores pela expropriação do transporte coletivo, retirando-o
da iniciativa privada, sem indenização, colocando-o sob o controle
dos trabalhadores e da população. Assim, deve-se construir o MPL
com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo
a se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem
vigente. Portanto, deve-se participar de espaços que possibilitem a
articulação com outros movimentos, sempre analisando o que é
possível fazer de acordo com a conjuntura local.”
O MPL, portanto, é um movimento de extrema-esquerda, de viés
marxista-leninista, que visa a expropriação (estatização) do
transporte público, sem indenização, como forma de colocá-lo sob
controle dos “trabalhadores e da população”. Pretende
transcender os limites do “capitalismo”, visando uma “revolução”
contra a “ordem vigente.” Surgiu pleiteando a gratuidade para os
estudantes, mas hoje defende a gratuidade para todo e qualquer
usuário.
Ou seja, o pleito do MPL passa pela estatização (transferência do
controle ao estado) dos meios de transporte, e pela socialização
(diluição pela sociedade) de seus custos. Como fica claro, a socialização dos meios de transporte é encarada apenas como um começo, um "instrumento inicial" numa pauta revolucionária, condizente com a comemoração ao som dao hino da Internacional Socialista cantado pelos líderes do movimento em um bar no centro de São Paulo, após o anúncio da revogação do aumento.
Inútil citar aqui as proibições constitucionais à expropriação sem indenização e ao confisco, visto que o movimento é revolucionário, e busca justamente subverter a ordem legal, fora de um processo institucional "regular" (devido processo legislativo e eleitoral - não é coincidência que os principais partidos políticos na base do movimento tenham sido rechaçados pela maioria dos eleitores nas urnas).
Ao menos parte disso não é novo, já que o transporte coletivo na
cidade de São Paulo, pela maior parte da história, foi de fato
estatizado. Até 1946 o transporte público na capital era operado
exclusivamente pela São Paulo Tramway Light and Power Company
Limited. Tratava-se de empresa privada que operava um sistema com
cerca de 500 bondes na capital. O fato é que os ônibus clandestinos
começavam a aparecer, e a Light não tinha mais interesse nem na
operação dos bondes, nem na (cara) implantação de novas linhas de
ônibus, sem o estabelecimento de um monopólio que lhe garantisse um
retorno mínimo sobre os investimentos. A companhia, assim, não
tinha interesse na renovação de seu contrato, que terminava em
1941, e que acabou sendo extraordinariamente prorrogado por
determinação do governo federal, a fim de se evitar um vácuo nos
transportes da capital paulista.
Em 1946 foi criada a Companhia Municipal de Transportes Coletivos,
que em 12 de março de 1947 incorporou todo o patrimônio da São
Paulo Tramway Light and Power Company Limited. Tínhamos então, na
prática, um monopólio estatal na questão da mobilidade urbana, na
medida em que poucos empresários foram autorizados a operar linhas,
e ainda assim somente distantes do centro. Na década de 50, a CMTC
chegou a deter 90% do transporte público da capital.
E como era o transporte público então? A marca da CMTC, como os que
têm mais de 30 anos talvez se lembrem, era a precariedade. Em
primeiro de agosto de 1947, uma população revoltada tomou as ruas
da cidade, depois de um aumento de 100% nas tarifas, promovido pelo
poder público logo após a estatização. Os melhores veículos,
comprados nos EUA e que contavam com direção hidráulica e
suspensão a ar, atendiam apenas linhas consideradas “nobres”,
como a Centro-Jardim América. Em 1958, a CMTC com 12 mil
funcionários e em crise financeira estava sucateada, não renovava a
frota e nem conseguia importar peças e acessórios para os ônibus
quebrados. Em 1957, da frota de 1.333 ônibus diesel, somente 821
funcionavam. A empresa também tinha 110 ônibus elétricos e 210
bondes que ainda não tinham sido tirados de circulação por causa
da incapacidade de substituir a frota.
E foi assim ao longo de sua história. Transporte precarizado por
ônibus velhos, desconfortáveis e lotados, que falhavam em atender
as regiões mais distantes da cidade.
Em 1993, o processo de precarização atinge seu auge. O sistema foi
municipalizado e, em 1994 finalmente (re)privatizado, loteado entre
47 viações privadas, que detém até hoje o monopólio em seus
respectivos itinerários, em contratos de 10 anos. Os contratos
atualmente vigentes foram celebrados na gestão da prefeita Marta
Suplicy.
Logo, nem as manifestações nem os pleitos atualmente vistos são
propriamente novos, ao contrário. Resta saber se a segunda parte das
reinvidicações do MPL, que envolvem a socialização dos custos do
sistema, é possível, ou, ainda melhor, desejável
Independentemente de quem administra as linhas de transporte na
cidade, o sistema tem custos inevitáveis (salários,
combustível, manutenção, impostos, etc.) que devem evidentemente
ser pagos. Estas despesas hoje são custeados em parte pelo usuário,
através da tarifa individual, em parte pelo contribuinte, através
de subsídios, destinados principalmente a custear as gratuidades
(como a de idosos)
e as reduções (como as de estudantes), além das integrações
proporcionadas pelo Bilhete Único. Os subsídios previstos no
orçamento da capital ao longo do ano de 2013 são de R$ 1,2bi, e, se a
tarifa permanecer congelada (como de fato está desde 19 de junho),
devem chegar as R$ 2,7bi até 2016, segundo estimativas da própria
prefeitura.
Ou seja, na prática, poucas pessoas pagam a tarifa “cheia”.
Idosos, pessoas com deficiência e crianças até 6 anos não pagam.
Estudantes tem desconto de 50% na tarifa. E cada usuário que usa
mais de uma condução (até um máximo de 4) no período de 3 horas
na capital, dilui o custo da tarifa individual entre
elas.
O custo do sistema pode ser facilmente calculado retirando-se o
subsídio (ou seja, gratuidades, reduções e benefícios do Bilhete
Único) e multiplicando-se o valor resultante pelo número de
usuários únicos. Assim, sem o subsídio da prefeitura, cada usuário
deveria pagar o valor de R$ 4,13 para uma viagem, considerando-se o
custo de R$ 32 mil para manutenção de cada um dos 15 mil ônibus da
frota.
Independentemente da concepção adotada para o transporte (se
público, privado ou misto, socializado ou não), esse custo não
desaparece. Alguém paga. Resta saber se é melhor que o usuário
pague, ou se é melhor diluir esse custo entre toda a sociedade,
instituindo-se a tarifa zero (ou “catraca livre”, que é um
eufemismo muito mais simpático e palatável).
Num sistema de “tarifa zero”, todo o custo do sistema seria
suportado pelo contribuinte. Projeto assim foi proposto pela então
prefeita Luiza Erundina em 1990, e previa dobrar-se o Imposto Predial
e Territorial Urbano, constituindo um Fundo de Transportes que
custearia o sistema. O projeto enfrentou forte resistência da
sociedade, e sequer foi submetido a votação.
Há ainda quem proponha custear a tarifa através do aumento do IPVA.
Esse mecanismo, segundo seus defensores, teria ainda a vantagem óbvia
de desestimular o uso do transporte individual, amenizando a questão
da poluição e do trânsito nas grandes capitais.
Em qualquer caso, os defensores da socialização argumentam que os
recursos economizados pelos passageiros ainda serviriam como estímulo
econômico.
Essas ideias padecem de diversos problemas de ordem prática, facilmente evidenciados.
Primeiro, a arrecadação e administração dos impostos é um
processo muito menos transparente do que o pagamento de tarifas pelos
usuários. Através de uma operação elementar, pudemos chegar aos
custos efetivos por usuário e por veículo, anteriormente neste
mesmo texto. As eventuais dificuldades dessa operação, na verdade,
decorrem dos subsidios prestados pelo Poder Público, que acabam por
distorcer os preços.
Por outro lado, é impossível saber, por exemplo, quanto o estado
efetivamente gasta com o sistema único de saúde, por usuário. É
possível estimar um gasto per capita, mas esse valor de forma alguma
corresponde ao gasto efetivo. Isso porque é impossível calcular as
perdas do sistema, geradas, por exemplo, por compras mal-feitas
(decorrentes do nosso draconiano sistema de licitações), por falhas
na arrecadação de impostos (sonegação) e por desvios de recursos
por agentes públicos não fiscalizados, além de ineficiências
inerentes a um sistema com pouca ou nenhuma fiscalização e quase
que totalmente desprovido de metas de qualidade e produtividade.
Isso se traduz num sistema caro ao contribuinte, proporcionalmente ao
serviço prestado. O Brasil, por exemplo, empenha cerca de 15% seu
produto interno bruto no custeio do sistema único de saúde. Isso
está abaixo do índice de alguns países desenvolvidos, como o
Canadá, que gasta cerca de 20% de suas riquezas com o mesmo serviço.
Entretanto, quase 50 milhões de pessoas, ou ¼ da população
brasileira, foram empurradas a algum tipo de assistência médica suplementar (plano
de saúde), em virtude da baixa qualidade do serviço público. Ou seja, embora na prática tenham direito a ser
atendidas pelo sistema público (e embora, de fato, alguns
procedimentos só possam ser realizados na rede pública), os 15% que
o Brasil gasta do seu PIB com o SUS na verdade se dividem entre ¾ de
sua população. Isso quase iguala nosso gasto per capita com saúde
ao do Canadá, mas com resultados obviamente muito diferentes.
Em outras palavras, como regra geral, o estado é um gestor ruim dos
recursos alheios, e o estado brasileiro tem sido um gestor ainda pior
ao longo da história.
Ainda, há uma falácia implícita na reinvidição de que estatizar
o transporte é colocá-lo sob controle público. E essa falácia não
é em hipótese alguma ideológica. Isso porque o estado é uma
entidade fictícia (pessoa jurídica de direito público) controlada
por partidos políticos, que nada mais são que pessoas jurídicas de
direito privado. Ou
seja, por sua própria natureza, o estado tem “dono”, e esses
donos são particulares, com interesses privados. Qualquer partido
político persegue o bem comum com tanto afã quanto uma empresa
privada o perseguiria, ou seja, somente na medida em que o “bem
comum” esteja associado com seus objetivos particulares. O
principal objetivo de um partido político é acender ao poder, e,
uma vez atingido esse objetivo, lá manter-se. Com frequência os
partidos sacrificarão o bem comum sem pestanejar para atingir esses
objetivos (como tem reiteradamente provado ao longo da história).
Assim, uma empresa estatizada não é uma empresa de todos
(“trabalhadores e usuários”, como quer o MPL), mas é uma
empresa de alguns poucos (no caso, dos partidos que ocupam
ocasionalmente o poder). E a desvantagem maior é que as empresas, em
geral, são muito mais fiscalizadas que o poder público: uma empresa
de capital aberto, por exemplo, é auditada por seus acionistas
independentes (as vezes na casa dos centenas ou milhares) e pela
Comissão de Valores Mobiliários, que por lei deve publicar seus
relatórios num banco de dados centralizado. O poder público, ao
contrário, é auditado por tribunais de contas cujos membros são
escolhidos e nomeados pelos próprios agentes públicos.
A diferença é tão patente, que nos países capitalistas centrais
se diz que uma empresa torna-se pública quando abre seu capital na
bolsa de valores. Nesse cenário, qualquer cidadão pode, de fato,
tornar-se sócio, dono desta companhia, verificando e fiscalizando
sua gestão e resultados, ao contrário de um processo de
estatização, quando uns poucos agentes públicos detém o controle
da companhia, com pouca ou nenhuma transparência.
Existe ainda um sério problema em colocar na conta dos usuários de
transporte individual os custos de gratuidade do transporte público.
O IPVA pago em São Paulo é o maior do Brasil, com uma alíquota de
4% sobre o valor do veículo. A prefeitura estima em cerca de R$ 6
bilhões o custo em socializar o transporte público. Isso é metade
de toda a arrecadação de IPVA prevista no estado de São Paulo ao
longo do ano de 2013. Ou seja, se a receita do IPVA fosse destinada a
socializar o transporte público, veríamos um aumento de 50% na
alíquota já alta do imposto.
Isso deprimiria fortemente a base de usuários que
optam por esse sistema: por que, afinal, alguém pagaria tão caro
para ter um carro, tendo à sua disposição transporte público
gratuito e de qualidade? Se num primeiro momento um nobre objetivo
parecesse ter sido alcançado, no médio e longo prazo veríamos uma
diminuição radical no número de veículos em circulação,
“matando” a fonte de financiamento do sistema. Ou seja, não se
trata de um modelo sustentável.
Além disso, não haveria estímulo econômico algum, na medida em
que os recursos “economizados” pelos passageiros do transporte
público de um lado seriam drenados dos usuários de transporte
individual de outro. Seria como tentar salvar o paciente moribundo
com uma transfusão de sangue do braço direito para o braço
esquerdo.
A conclusão a que se chega é simples: estatizar e socializar o
transporte público levaria a piora do serviço e a aumento dos
custos, sacrificando ainda mais a transparência do sistema.
A solução possível é justamente a inversa: aumentar a competição
privada, pondo fim aos oligopólios estimulados e regulamentados pelo
poder público. Se as viações, ao invés de repousarem na falta de
competição e ausência de risco garantida pelo estado forem
obrigadas a disputar a preferências dos passageiros, haverá espaço
para queda da tarifa e melhoria do serviço oferecido à população.
Mas "um erro antigo é sempre mais popular que uma nova verdade"
- Provérbio Alemão.
(Com a revisão e colaboração de Renato Paulo: http://www.facebook.com/nato21?fref=ts)